segunda-feira, 9 de julho de 2012

A função pública e equidade, segundo Vasco Pulido Valente (Aliás, a iniquidade de Vasco Pulido Valente)


Sumário: Vasco Pulido Valente, sob o título “Entendimentos da equidade” fez publicar um artigo de opinião na edição de 8 de Julho de 2012 do jornal “Público”. A propósito do recente acórdão do Tribunal Constitucional, pretensamente em nome da equidade, faz o discurso da iniquidade, espezinhando a dignidade profissional dos funcionários públicos. Mas também deturpando e omitindo muitos aspectos. Este discurso explora os sentimentos mais básicos, e constituí um verdadeiro ensaio do “discurso do ressentimento”. Impunha-se uma resposta clara, denunciando a injustiça na repartição de sacrifícios. Basta de atentados à inteligência dos portugueses!


I - Vasco Pulido Valente, com a sua verve cáustica, não tardou em alinhar com o discurso do ressentimento. Sob o título “Entendimentos da equidade” fez publicar um artigo de opinião na edição de 8 de Julho de 2012 do jornal “Público”, cujo teor merece, no mínimo, severa crítica.

A propósito da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral das normas que suspendem o pagamento do subsídio de férias e do subsídio de Natal aos funcionários públicos e trabalhadores do Sector Empresarial do Estado, Vasco Pulido Valente começa por esboçar as diferenças entre quem “trabalha no funcionalismo público e de quem trabalha para instituições privadas”, diferenças essas que “pedem em teoria (e também na prática) um tratamento diferente”.

II - Vasco Pulido Valente caracteriza o funcionário público como “anónimo, e em geral inócuo”, que goza de “privilégios de que não goza o empregado vulgar que, para seu mal, trabalha num escritório, numa fábrica, numa loja de esquina”, estabelecendo seis privilégios, cuja falácia importa desmontar[1]:

Primeiro: “não o podem despedir (ou despromover) e só com muita dificuldade punir” – Esta é uma evidente falsidade, não só porque sempre os funcionários públicos estiveram sujeitos ao poder disciplinar, como também pelo facto de as alterações ao Regime de Contrato de Trabalho em Funções Públicas que foram levadas a cabo no consulado de José Sócrates, o aproximaram, e muito do regime do Código do Trabalho. O que por ventura pode acontecer é que, a crescente deterioração do Direito do Trabalho, e a nem sempre verificada concordância entre a legislação e a prática, levem a esta sensação. Mas por falar em estabilidade laboral, esqueceu-se Vasco Pulido Valente da lei da mobilidade?

Segundo: “é promovido independentemente do seu mérito” – Mais uma falácia. Vasco Pulido Valente, mais uma vez ignora ou esconde o Regime de Avaliação aplicável aos funcionários públicos. Mais, ignora, ou esconde, que na maioria dos sectores privados abrangidos pelas Convenções Colectivas de Trabalho, se encontram igualmente diuturnidades e promoções obrigatórias.

Terceiro: “tem por vezes um horário permissivo e às vezes reduzido” – Que quer Vasco Pulido Valente dizer com isto? Permissivo? O horário dos serviços públicos é rígido, e qualquer exemplo que possa apresentar poderá, quando muito, resultar de uma tolerância do responsável do serviço, tantas vezes concedida também no sector privado. Quanto ao horário de trabalho, ele é efectivamente de 35 horas semanais no Regime de Contrato de Trabalho em Funções Públicas. Portanto, é sempre reduzido quanto às 40 horas semanais previstas no Código do Trabalho.

Quarto: “beneficia de um regime de saúde especial, mais rápido e flexível” – Desde logo Vasco Pulido Valente se esquece que os funcionários públicos pagam pela ADSE[2] e pelos outros subregimes, sendo-lhes descontado do vencimento a quantia legalmente estabelecida. E esquece também que muitos trabalhadores do sector privado beneficiam de seguros de saúde gratuitos ou outras regalias a este nível.

Quinto: “num grande número de casos, o estado permite que ele acumule o seu lugar na administração com um emprego (ou empregos) no denominado “sector privado” – Ora este é igualmente um argumento perverso. Muitos funcionários públicos têm grandes limitações na acumulação com funções privadas, atenta a legislação específica. De resto, a acumulação de funções privadas carece sempre de autorização, o que genericamente não se passa no sector privado. Poderá, contudo, discutir-se se deve ou não aumentar-se tal limitação, o que em certos sectores, como o da medicina, me parece até aconselhável.

Sexto: “frequentemente arranjou o seu “vínculo ao Estado” por pressão pessoal ou partidária” – Quanto a este argumento, saiba o Senhor Vasco Pulido Valente que a larga maioria dos funcionários públicos passou por concursos públicos de admissão, muitas vezes exigentes, e que adquiriram o seu “vínculo” por mérito pessoal. Até admito que essa crítica seja válida em alguns casos, normalmente verificados onde a política tem mais peso, como seja a administração local e regional, pelos seus esquemas clientelares. Mas tomar a parte pelo todo é insultuoso.

Vasco Pulido Valente ignora ainda, ou não o diz, que os cortes cuja inconstitucionalidade foi declarada são aplicáveis igualmente a muitos trabalhadores que trabalhando para o Estado e empresas públicas, não beneficiam dos alegados e falaciosos privilégios a que aludiu.

E olvida também que, ao contrário do que se passa no sector privado, as remunerações dos funcionários públicos são limitadas, vendo-se cada vez mais a sua disparidade com os obscenos salários pagos a alguns no sector privado.

III - Este tipo de argumentação falaciosa, intelectualmente desonesta e politicamente indigente, começou a ser ensaiada pelos partidos que suportam o Governo, ao indiciarem o alargamento dos sacrifícios ao sector privado, e prontamente foi seguida pelos comentadores de coro da nossa praça.

É uma linha de argumentação que procura explorar os sentimentos mais básicos da população, que visa acentuar o discurso do ressentimento, que se encontra latente, e que bem nos explica Rob Riemen em “O eterno retorno do fascismo”.

Com esta linha de argumentação pretende-se virar os Portugueses contra os Portugueses; pretende-se humilhar todos aqueles que com zelo e dedicação asseguram o serviço público e as funções do Estado em todas as suas vertentes; é o nivelar por baixo as aspirações de um Povo.

Sim, nivelar por baixo, abrindo as portas à insegurança no trabalho, à precariedade e às disparidades de rendimento. É por isso que para o Estado trabalham já enfermeiros a menos de 4 euros/hora, contratados em outsourcing, com lucro para entidades intermediárias.

O Trabalho, seja ele no sector público ou privado, não pode ser assumido como uma mercadoria…

IV – Mas já que Vasco Pulido Valente falou em equidade, e a propósito das finanças públicas afirmou que “a imprensa e a televisão e, hoje, o próprio Governo não param de revelar a perversidade com que se gastou o dinheiro público durante mais de 30 anos”, não posso de chamar alguns temas ao debate, que Vasco Pulido Valente indecorosamente olvidou.

Em primeiro lugar as Parcerias Publico Privadas e as suas taxas de rentabilidade garantidas. Como se justifica que muitas das PPP’s tenham taxas de rentabilidade garantidas superiores a 10%, quando muitas vezes foram contratadas em períodos de baixas taxas de juro, representando taxas 3 e 4 vezes superiores? É racional? É justo? É equitativo?

Em segundo lugar a perversidade do modelo de financiamento permitido pelo Banco Central Europeu: sendo detido pelos Estados Membros, através dos respectivos Bancos Centrais, não os pode financiar directamente. No entanto financia a banca privada a taxas que rondam o 1%, e esta financia os próprios Estados com grandes ganhos, dando de garantia ao BCE os títulos da dívida pública desses mesmos Estados. É um pouco como se tivéssemos o dinheiro depositado no banco à taxa de 1%, e dessemos ao banco esse mesmo depósito como garantia de um empréstimo em que pagaríamos 7% de juros. É racional? É justo? É equitativo?

Em terceiro lugar a distribuição do aumento da carga fiscal: essencialmente assente nos rendimentos do trabalho e no cego imposto sobre o consumo, deixa escapar a tributação do património e dos rendimentos de capitais, que beneficiam de taxas liberatórias mais reduzidas. Como se tudo isto não bastasse, a única tributação sobre o património incide sobre o património imobiliário, deixando de fora acções, depósitos bancários e aplicações financeiras. A generalidade dos portugueses, em matéria de tributação sobre o património paga sobre valores que nem sequer são seus, considerando as dívidas associadas à aquisição desse património. É racional? É justo? É equitativo?

Estes são apenas três exemplos que bem demonstram a falta de equidade das políticas até agora seguidas. Na verdade demonstram cabalmente a iniquidade da repartição dos encargos destas políticas.

V – Por último, em tal artigo, Vasco Pulido Valente confunde, propositadamente, ou por ignorância, défice doméstico e dívida externa com dívida pública, na medida em que apenas fala dos pretensos privilégios da função pública. Esquecerá, ou ignorará Vasco Pulido Valente que boa parte do empréstimo da Troika FMI/CE/BCE, cujas consequências estão a ser amargamente pagas pelo Povo Português, se destina à recapitalização da banca?

Para mim basta de iniquidade, sob a capa da defesa da equidade.

A posição de Vasco Pulido Valente aqui criticada, é um insulto às centenas de milhares de portugueses que todos os dias dão o seu melhor no exercício de funções públicas. É um ignóbil insulto à sua dignidade profissional. Mas não deixa também de ser um insulto à inteligência dos Portugueses e ao nosso sentimento de Justiça.

Remato dizendo que não sou funcionário público. Sou profissional liberal e mantenho ligação aos meios empresariais. E faço um apelo a todos os funcionários públicos: se algum dia se depararem nos vossos serviços com o cidadão Vasco Correia Guedes, também conhecido por Vasco Pulido Valente, não o tratem mal. Demonstrem antes a vossa dignidade profissional e o vosso zelo e noção de serviço público. É a melhor forma de o envergonharem…

Ventosa, 9 de Julho de 2012

Rui Costa

2 comentários:

Rosa Brava disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Menina Marota disse...

Ao ler este artigo, confesso que uma grande revolta e, até, repulsa, se apoderou de mim.

O maior cego é aquele que não quer ver! A pior das moralidades é aquela que passa pela consciência obtusa de quem pensa que sabe e não sabe nada!

Vasco Pulido Valente, ou antes, Vasco Correia Guedes que foi expulso por mau comportamento do Liceu Camões quando estudante, escreve de uma forma absurda sobre os funcionários públicos, vertendo uma verborreia de palavras de quem ignora completamente quem são os Funcionários Públicos. Eles não são somente os diplomatas, magistrados, médicos, enfermeiros, os professores, são também toda uma classe de trabalhadores que aufere menos de 500 euros mensais, que trabalham muitos deles para além do seu horário normal, sem receberem qualquer tipo de compensação, muitas das vezes sem quaisquer condições de trabalho, em locais sem luz natural, sem ventilação e sem as mordomias que muitos julgam que TODOS os Funcionários Públicos possuem.

É lamentável que alguém que ganha a vida a escrever e a comentar sobre os outros não se informe convenientemente sobre as realidades deste País e possa escrever tão levianamente sobre a dignidade de profissionais ao serviço do Estado.