quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

A “Janeirinha”, uma grosa de anos depois, os mesmos problemas!

Sumário: Portugal, 4 de Janeiro - reforma do mapa das freguesias e concelhos, aumento dos impostos sobre o consumo e reestruturação do Ministério da fazenda. Não, não se trata de 4 de Janeiro de 2012, mas sim de 4 de Janeiro de 1868. Na sequência deste conjunto de reformas, que geraram grande descontentamento popular, eclodiu no Porto, a 1 de Janeiro de 1868, uma grande revolta popular que viria a conduzir à queda do Governo, a 4 de Janeiro de 1868.

As profundas raízes do poder local e do receituário para a resolução das crises económicas e financeiras do país aconselham, nesta data, a visita a estes acontecimentos do passado, procurando aprender com os erros de então.

Perceber, no fundo, que os Portugueses nem sempre estiveram letárgicos nas dificuldades e da importância da sua participação em reformas como a do mapa administrativo.

I – Portugal, 4 de Janeiro: reforma do mapa das freguesias e concelhos, aumento dos impostos sobre o consumo e reestruturação do Ministério da fazenda. Não, não se trata de 4 de Janeiro de 2012, mas sim de 4 de Janeiro de 1868. Na sequência deste conjunto de reformas, que geraram grande descontentamento popular, eclodiu no Porto, a 1 de Janeiro de 1868, uma grande revolta popular que viria a conduzir à queda do Governo, a 4 de Janeiro de 1868, exactamente há uma grosa de anos, levando ainda, posteriormente à revogação dessas medidas.
Grosa, que é uma medida correspondente a doze dúzias, é tão velha como as receitas mais fáceis para debelar crises, que ciclicamente são repetidas e têm correspondência nas que se enunciaram. No entanto, e apesar de grosa, enquanto medida ter caído em desuso, as meditas imediatas e fáceis de combate à crise mantêm, sempre, actualidade, apesar do gravame e descontentamento popular que provocam.

Mais que a reestruturação do Ministério da Fazenda (actual Ministério das Finanças, que este país é pródigo em deixar cair as designações tradicionais – no Brasil, ainda hoje é Ministério da Fazenda), ou que o aumento dos impostos sobre o consumo (o actual IVA), foi a revisão da divisão administrativa dos corpos administrativos (assim se chamavam as autarquias locais), com especial relevância para as freguesias que ditou a indignação popular e o sucesso da “Janeirinha”. Estranhas coincidências, qual estranha é a forma de vida do nosso povo!
II – A reforma da divisão territorial foi consequência de uma ambiciosa reforma administrativa prevista na Lei da Administração Civil, de Martens Ferrão, sancionada por Carta de Lei de 26 Junho de 1867, que visava uma profunda reforma do funcionamento dos órgãos do poder local, bem como uma profunda revisão da divisão administrativa do país.
A Lei da Administração Civil de 1867 foi a primeira lei em Portugal a estabelecer critérios objectivos para a criação, extinção e modificação das autarquias locais.
Para isso, dedicou a esta disciplina o seu Capítulo I, começando por estabelecer a divisão administrativa do país em Distritos, compostos por Concelhos e estes compostos por Paróquias Civis (artigo 1.º), aos quais era reconhecido o estatuto de “pessoas moraes”, isto é de pessoas colectivas de direito público (artigo 9.º).
Na esteira do Código administrativo de 1842, a Lei da Administração Civil de 1867 estabelece um regime especial de divisão territorial para os concelhos de Lisboa e Porto, que se subdividiam em bairros e estes em paróquias civis (artigo 1.º, § 2.º).
As Paróquias Civis eram distintas das Paróquias Eclesiásticas previstas no Código Administrativo de 1842, que se mantinham como tal, e eram agrupadas em Paróquias Civis (artigo 7.º).
Os Distritos estavam definidos na Lei de Administração Civil de 1867, num total de 11 no continente (contra 17 previstos no mapa anexo ao Código Administrativo de 1842) e de 4 nas Ilhas Adjacentes (artigo 2.º). O diploma legal previa ainda a manutenção, a título transitório, dos Distritos da Guarda e de Portalegre, durante pelo menos 3 anos (artigo 2.º, § Único).
A competência para estabelecer a primeira divisão administrativa decorrente da aplicação da Lei da Administração Civil estava cometida ao Governo (artigo 3.º), ouvidas as Juntas Gerais de Distrito (artigo 3.º, § 1.º), devendo estas ouvir previamente as Juntas de Paróquia, relativamente ao estabelecimento da Paróquias Civis (artigo 3.º, § 2.º) e as Câmaras Municipais, relativamente à divisão administrativa dos concelhos (artigo 3.º, § 3.º).
No âmbito deste processo de consultas, destinado a estabelecer a divisão administrativa “mais convenientemente para os interesses e commodidades dos povos”, nos termos dos critérios estabelecidos (artigo 4.º), eram ainda ouvidos os Governadores Civis dos Distritos, os Administradores dos Concelhos e o Conselho de Estado (artigo 3.º, § 4.º).
A Lei de Administração Civil de 1867 teve por isso, a preocupação de encontrar critérios para a criação, extinção e modificação das autarquias locais. Quanto aos concelhos, dispunha:
a)      Os concelhos deveriam ter, pelo menos, 3000 fogos (artigo 5.º);
b)      Excepcionalmente, poderia manter-se o regime municipal em concelhos já existentes, com menos de 3000 fogos, desde que dificuldades de comunicação ou ponderosas razões de interesse público o impusessem, devendo no entanto ser reunidos com outros concelhos que com eles perfizessem esse número de fogos, para efeitos de serem regidos por um único administrador (artigo 6.º);
c)       O concelho de Lisboa compreenderia somente a cidade e subdividir-se-ia em 3 bairros, e o do Porto em 2 (artigo 5.º, § Único).
Quanto à nova figura da Paróquia Civil, a sua divisão territorial deveria obedecer aos seguintes critérios:
a)      As Paróquias Civis deveriam ter, pelo menos, 1000 fogos nas cidades e vilas onde a população se encontrasse aglomerada (artigo 7.º);
b)      As Paróquias Civis deveriam ter, pelo menos, 500 fogos nas povoações rurais (artigo 7.º);
c)       Excepcionalmente estes valores poderiam ser reduzidos pelo Governo, quando dificuldades de comunicação ou ponderosas razões de interesse público o impusessem (artigo 7.º, § 3.º);
d)      As Paróquias Civis poderiam abranger mais que uma Paróquia Eclesiástica, cuja divisão e integridade territorial se mantinha (artigo 7.º, § 1.º), não devendo as Paróquias Eclesiásticas terem o seu território repartido em mais que uma Paróquia Civil (artigo 7.º, § 2.º).
Para além dos critérios já referidos para a divisão administrativa em Concelhos e Paróquias Civis, as decisões relativas à divisão administrativa, nos termos do artigo 8.º deveriam ainda atender:
a)      À extensão territorial e densidade populacional (artigo 8.º, 1.º);
b)      Às condições económicas e comodidade de cada grupo de povoações (artigo 8.º, 2.º);
c)       À natureza e a permanência de relações tradicionais e de comércio entre as diversas povoações (artigo 8.º, 3.º);
d)      Às semelhanças das actividades agrícolas e industriais e às afinidades comerciais promovidas pela necessidade e conveniência de troca de certos e determinados produtos (artigo 8.º, 4.º);
e)      As divisões naturais dos solos promovidas pelos rios e pelas montanhas, e a maior ou menor dificuldade de comunicação por meio de pontes, estradas e vias-férreas (artigo 8.º, 5.º);
f)       A quaisquer outros factos que tendam a dar aos Distritos, aos Concelhos ou às Paróquias Civis verdadeira unidade territorial (artigo 8.º, 6.º).
Apesar da competência do Governo para estabelecer a primeira divisão administrativa decorrente da aplicação da Lei da Administração Civil, esta vinculou o exercício de tal competência a critérios objectivos de população e a critérios de conveniência político-administrativa, bem como a um complexo regime de consultas prévias e à audição do Conselho de Estado:
a)      Se verificasse escassez territorial dos Concelhos, de tal modo que não houvesse número suficiente de pessoas habilitadas a exercer cargos municipais, sem que os mesmos tivessem de ser reeleitos ou eleitos alternadamente (artigo 11.º, 2.º);
b)      Se verificasse a escassez de recursos do concelho para ocorrer às suas despesas ordinárias, sem que houvesse sério agravamento tributário dos contribuintes (artigo 11.º, 3.º);
c)       Quando se verificasse a deserção de candidaturas aos órgãos de governo municipal, ou quando as candidaturas apresentadas não contivessem número suficiente de candidatos para prover os mandatos em disputa, e tal facto se verificasse novamente numa segunda data marcada para a eleição, o Governo de imediato, e sem qualquer consulta, anexaria provisoriamente o Concelho em causa a um Concelho vizinho. Verificada esta situação na eleição ordinária seguinte, a incorporação provisória converter-se-ia em definitiva (artigos 10.º, 4.º e 15.º).
A Lei da Administração Civil de 1867 constituía uma verdadeira revolução copernicana na definição de critérios de divisão administrativa, o que teve consequências na divisão administrativa que viria a ser aprovada pelo Governo pelos Decretos de 10 e 17 de Dezembro de 1867.
Assistiu-se com estes Decretos a uma forte redução do número de Concelhos, que passavam a 159, e a fixação do número de Paroquias Civis em 1026, para um total de 3801 Paróquias Eclesiásticas.
Tal decisão acarretou uma grande onda de descontentamento, potenciada ainda pelo descontentamento com o aumento de impostos sobre o consumo, culminando na “Janeirinha”, que culminou com a demissão do Governo e a revogação da Lei da Administração Civil de 1867, bem como dos Decretos de 10 e 17 de Dezembro de 1867, através do Decreto de 14 de Janeiro de 1868.
Esta foi a última grande tentativa de reforma profunda e radical do mapa administrativo português, ao nível dos Municípios e Freguesias, desmotivou novas tentativas para o efeito.
III – Actualmente o Governo tem em marcha a elaboração de uma reforma ´administrativa, balizada pelo Livro Verde da Administração Local (cuja cor da capa, ironicamente, não condiz com a designação), propondo, entre outras coisas, e desde logo, a reforma do mapa de divisão administrativa de freguesias.
Bem se sabe que tal resulta de uma imposição da famigerada “troika externa” (FMI, BCE e CE), no tristemente célebre memorando de entendimento, que obteve o acordo pré-eleitoral da “troika interna” (PSD, PS e CDS).
Bem se sabe que esta proposta ataca o elemento pobre da família da organização administrativa do estado, vista que se concentra, para já, nas freguesias, que constituindo o nível de poder mais próximo das populações, representa tão só cerca de 0,1 % da Despesa Pública!
Bem se sabe que esta reforma, para que seja expressiva, terá necessariamente de extinguir inúmeras freguesias de um interior do país, já fustigado pelo envelhecimento da população, pela desertificação e pelo paulatino encerramento de serviços públicos.
Bem se sabe que esta reforma, prima pela ausência de precedência de uma reforma de competências e financiamento das freguesias que verdadeiramente a justifique, atendendo à expressão financeira das freguesias.
Bem se sabe que em populações com uma maior identidade histórica esta reforma poderá ferir o sentimento de pertença e o orgulho, por vezes milenar, das populações.
Actualmente, ainda não se conhecem as propostas definitivas do Governo nesta matéria. Depois da monumental vaia ao navio almirante deste Governo, o Ministro Miguel Relvas, em pleno Congresso da Anafre, cuja maioria é do próprio partido que suporta o Governo, e quiçá considerando uma memória, ainda que distante da Janeirinha, talvez a montanha venha a parir um rato, e esta reforma se resigne a ser uma medida para inglês ver (expressão curiosamente originada com o cumprimento enganoso das medidas noutros tempos impostas pelos nossos credores internacionais).
Importaria pois, para que a reforma demonstrasse algum mérito, que:
1 - Se debatesse previamente as competências e financiamento das freguesias;
2 – Os critérios da futura divisão administrativa tivessem em conta as necessidades e especificidades das populações do anterior, constituindo uma janela de oportunidade e um mecanismo de resiliência, ao invés de revelarem o desprezo da administração central pelas áreas menos densamente povoadas.
3 – Se criassem meios efectivos de audição das populações, designadamente através do recurso ao referendo local, de resto em consonância com as obrigações internacionais assumidas pelo Estado Português, desta feita por tratado internacional (ver artigo 5.º da Carta Europeia da Autonomia Local), e no verdadeiro reconhecimento da Garantia da Autonomia Local, constitucionalmente consagrado.
IV – Da “Janeirinha”, restam hoje a memória histórica, o diário “Primeiro de Janeiro”, que ainda se publica e cujo título é uma referência a essa grande revolta. Quanto ao orgulho e espírito de luta do Povo Português, cumpre-nos a nós demonstrar que ainda vive.
E isto, para que um outro símbolo desse orgulho e espírito de luta, com origem em revoltas anteriores, mas do período do liberalismo constitucional não perca o seu significado: o Hino da Maria da Fonte.
Há quem diga que o Hino da Maria da Fonte é executado nas cerimónias oficias com a presença de membros do Governo para lhes recordar as velhas Liberdades Ibéricas e a soberania popular. Bom seria, que este ritual tivesse efectivo significado para os governantes e para o Povo, não se transformando em mais um cerimonial destituído de sentido.
Ventosa, 4 de Janeiro de 2012
Rui Costa

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